Apresentação de Maria Lúcia Dal Farra
(Prêmio Jabuti de Poesia 2002)
A retirada de um tumor do cérebro de uma mulher se embaraça, nesta narrativa, com o desastre de automóvel sofrido por outra: “águas me cercaram até a alma, o abismo me rodeou, e as algas se enrolaram na minha cabeça”. É como se, pelos hábeis dedos do neurocirurgião (que alinhavam o fio de acaso entre ambas), suas histórias se enredassem, se enovelassem, a ponto de compor este “romance de vidas”, essas 36 “Linhas” que as costuram.
Enquanto a segunda mulher (vítima de lesão medular) perde a mobilidade, a outra (recuperada, com a potência do seu sopro vital) lhe cede a voz, e, com ambas as mãos, juntas, constroem a muralha da sua resistência e do seu alerta ao mundo.
Mas não suponha o leitor que este é um livro de auto-ajuda. Ao contrário, trata-se de um volume que pede-ajuda!
E é de tudo que o romance se compõe: de pedras, pedacinhos, retalhos, atalhos, desenhos de todos os tipos – pedregulhos. É um Muro de Lamentações onde, em cada interstício entre as palavras, um a um dos componentes desse enredado acontecimento enfia (esconde?) o seu minúsculo papel, a sua mensagem, o seu recado, o seu pedido, a sua prece: o seu enigma. Todos interligados (amarrados entre si como num “cipó de floresta amazônica”) no mesmo Shoah.
Daí o hibridismo desta obra, composta por toda a sorte de contribuições ficcionais, que pedem auxílio e apelam para que sejam preenchidas com o que o leitor puder lhes achegar com o cimento da sua experiência. São narrativas de lendas, de cenas dolorosas; diálogos internalizados, matéria jornalística, relatórios; improvisações jazzísticas, poemas; entrevistas, suposições, depoimentos; notas ao pé da página, filosofia, história, crítica social, psicanálise, literatura; religião. Misticismo em todos os sentidos.
E o mérito que ela vai ganhando não é só porque nos põe direto em contato com a inaudita e inimaginável dimensão do que cabe aos tetraplégicos, daquilo que lhes antecipou a tragédia ou que lhes sobreveio a tal infortúnio – e isso não é possível medir em éfas. É que, por meio da magia de tal miscigenação literária, do envolvimento íntimo com o leitor, a escrita de Lelita Benoit expõe uma evidência de difícil deglutição. Que nada ou ninguém neste nosso território – muito menos alguma instituição (seja a Medicina, a Educação, os Seguros Sociais, a Justiça, o Trabalho – e, sobretudo, a consciência discriminadora das pessoas) está minimamente preparado para oferecer cidadania a alguém tocado por tal desdita. Encarcerados nos próprios corpos, eles (e nós com eles) se tornam (de novo) vítimas do simulacro pós-moderno de um disfarçado Holocausto.
Mephisto, Jonas, Alice do País das Maravilhas, o Tarô, a Torá, os Fundos, as Peregrinações, os Médicos, os Advogados, os Professores, os Videntes, as Matrioskas, os Descaminhos, Kafka, Freud, Borges, Amós Oz – todos se misturam como ingredientes para uma tal “torta de legumes”, capaz de nos fazer regurgitar de indignação. Porque (com muita delicadeza, sabedoria e poesia), mostram a amarração em feixe (a imobilidade!) a que estamos submetidos.
A narradora palpita ou se abstém (sem critério fixo: a vida é um sistema espúrio!); permeia e se deixa atravessar pelas outras vozes, nessa missão que é o Livro – de maneira a reconstruir a sua própria cabeça, seu próprio eixo. Em hebraico bíblico, Deus é o Nome, aquele que erige o Universo com letras e números: o Alfabeto. Pois as Linhas a serem lidas precisam do concurso de muitas letras outras, de muitos de nós – de todos! E, de preferência, da nossa excelsa liberdade para interpretá-las.
Posfácio de Renata Udler Cromberg
(Psicanalista membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae)
A escrita de Lelita Benoit é um gesto de libertação. Um corte em L em sua cabeça marca um renascimento no L de seu nome e torna-se um gancho de liberdade que costura enigmaticamente a história de Lelita e de Daniela com a habilidade amorosa do médico Alberto Bortman.
E através de uma tessitura entre as vidas, a cultura, as instituições, surge a violência aleatória que produz desfalecimentos de novas vidas que renascem de perdas, onde os lutos, as raivas e as indignações movem as pessoas para criar ganhos onde só haviam danos.
Tetraplégica, Daniela torna-se mulher, médica, amante e narradora. Gaguejante, Lelita recria a fala através da escrita criativa e erógena. Contadora de histórias desdobra outras tragédias de seu dano e refaz-se acolhedora, esponja sensível a absorver palavras para ecoá-las.
Acompanhada da palavra escrita em nome de Deus na Bíblia, que lhe serve de epígrafes norteadoras, e também do amor às palavras de Oz e de Peretz, estes lúcidos e críticos comentadores do judaísmo trágico e rico, Lelita, da alma faz palavras, tece e trança histórias e realidades de uma maneira tocante. Desenha um corpo vivo de Daniela que não se cala na paralisia biológica e que nos faz descobrir os múltiplos corpos, que se movem como corpo erógeno, corpo emocional, corpo espiritual, corpo de conhecimento
E por fim o enigma, a repetição, a tragédia judaica: o drama da família na fuga para o país Brasil e o medo da morte aleatória pela tirania soviética, e a tirania daquele que não vê o que fez ao outro, que não se responsabiliza pelo que fez, nos braços de uma justiça lenta, com acenos de impunidade.
Só o amor faz frente à crueldade, mas este é um amor paciente, que não pode sufocar pelo seu excesso, mas tem que estar lá na sua presença aguerrida de um pai, Alberto, que mesmo não sendo Deus precisa se fazer um, para fazer ponte de ação dos desejos de Daniela.
Lelita livre tornou seu corte em L um labirinto enigmático de exposição da dor e do amor e da superação criadora e criativa, escrita simbolizante em aberto para o devir.